“Atrás de mim vem um trem
numa velocidade espantosa –
mas que nunca me alcançará.”
(M. Sorescu - poeta romeno)
Trem das cores, dos doces, dos prazeres, das raças, dos humores, dos rumores, das amenidades, dos destinos. Vidas que transitam reclusas de um vagão a outro. Vidas intransitáveis. Sujeitos sem rosto, sem sexo, apenas seres. Vivos. Cada pessoa um personagem. Cada personagem uma história de vida que vale ser relatada. Um mundo, um poço profundo de experiências e imaginação, um universo de sensações, cultura, sonhos, esperanças, intrigas, dores, amores, brios, infinitas possibilidades.
Registro. Palavra inquietante, que puuuulsa latejante (em mim ultimamente). Instigante, vibrante e tudo o mais. Tudo vale ser registrado, consumido, consumado, tudo merece ser revisto, ser lembrado, ser sentido outra vez, e numa próxima vez, e mais uma vez. Porque viver é uma longa caminhada. Andanças entre muitas estradas, desvios, curvas, retomadas, paradas obrigatórias, acidentes, subidas e descidas, corridas em alta velocidade, partidas e chegadas, como bem lembra Milton Nascimento.
A vida se repete na estação
Tem gente que chega prá ficar
Tem gente que vai
Prá nunca mais...
Tem gente que vem e quer voltar
Tem gente que vai, quer ficar
Tem gente que veio só olhar
Tem gente a sorrir e a chorar
E assim chegar e partir...
São só dois lados
Da mesma viagem
O trem que chega
É o mesmo trem
Da partida...”
Um encontro. Acasos. Imagens. Cores. Constatação. Um sopro.
Para saciar minha sede de viver outras vidas, essas e outras faltas que me acompanham, decidi os trilhos da minha vida, só por hoje.
E convido: vamos sentir, pensar, vivenciar, enfim, experimentar um filme?
Trem chegando, apitando, soprando fumaça, todas as correntes enferrujadas estalando na tentativa de frear.
CENA 02. INT. ESTAÇÃO DE TREM – DIA
Dentro dos vagões, pessoas entram e escolhem um acento. Um e outro aproveitam a viagem para descansar e viram de lado para adormecer até chegar a sua estação. Outros se observam. Outras tiram o terço. Casais se enamoram. Estudantes lêem.
Um ou outro vendedor ambulante oferece doces e refrigerantes.
O trem da a partida. Em movimento segue com alta velocidade. Olhares dispersos para a paisagem lá fora. Alguns pensam nas contas a serem pagas, alguns tentam agendar mentalmente as obrigações do dia. Mãe repreende a criança que quer ficar de pé.
- O trem está andando, você deve se sentar e ficar quieto.
Uma moça concentrada em sua leitura e anotações é interrompida por uma voz suave de uma senhora de meia idade.
- Está lendo querida?
- Humrum.
- Filha, desculpe interromper, mas qual é o livro?
- “Elogio da leitura”.
- É uma história de amor?
- Não. É um elogio à leitura.
- Ah, sim.
- Em que posso ajudá-la, Sra.?
- Você poderia ler um trechinho pra eu ouvir?
- Claro. “Leia agora ou cale-se para sempre. Leia agora e pense para sempre. Leia agora e abra-se para sempre, perca para sempre a inocência, ou melhor, a ingenuidade. O ouvido do leitor torna-se órgão privilegiado da inteligência. É o ouvido que comanda a leitura, dizia Ítalo Calvino. Lendo, ouvimos em nosso interior palavras transformadoras, inspiradoras, gozosas, dolorosas, gloriosas, luminosas. Ouvimos de modo atento e criterioso os sons emitidos por nós e pelo entorno. Ouvimos com mais nitidez o que nos rodeia, e nos ouvimos melhor. Podemos distinguir o ruído do murmúrio, o grito do brado, o gemido de dor do gemido de prazer, o choro convulsivo da convulsiva gargalhada”.
- Nossa. Estou emocionada, comovida mesmo. Quem dera saber ler, para sentir todas essas coisas.
- Ah, pego o trem sempre nesse mesmo horário e posso ler um pouco pra Sra., já que gostou...
- Não, minha filha, não se importe comigo não. Vá, faça seu estudo aí quietinha, que eu já estou habituada a fazer outras leituras.
- Mas qual? (rindo-se contrariada)
- Eu observo. Leio a alma, os gestos, os olhares dos passageiros e imagino o comportamento deles em casa, no trabalho, na rua... assim eu fantasio as vozes, visualizo as cenas na minha cabeça, não é por que não sei ler, que não sei pensar ou criar, não é mesmo?!
- É. (rindo-se carinhosa)
- Bom, vou descer na próxima, Estação do Segredo.
O trem partindo. A senhora correndo acompanhando, ansiosa para se despedir.
- Ei, moça?! Acena com entusiasmo para quem acabara de conhecer.
O trem retoma sua jornada e segue para mais uma parada na próxima estação. Na estação seguinte, a moça salta e caminha reflexiva a passos largos.
CENA 06. INT. ESCOLA – DIA
Moça chega à escola.
- A tarefa de hoje, crianças, é passear num trem. Nós vamos perceber as pessoas, seus modos e vamos imaginar a vida delas, mergulhar no labirinto que é o mundo, para nós darmos continuidade às histórias inacabadas.
Mas antes, vou ler um trecho pra vocês. Então, olhos, ouvidos e corações, atentos: “Refiro-me, porém, com mais entusiasmo, a todo livro que seja espelho no qual nos vemos, e janela através da qual vislumbramos o Outro. Esse Outro é também o outro que atravessa a rua, que me faz um aceno, que me envia uma mensagem”.
Para a Sra.: uma conversa despretensiosa que ficará gravada na Estação da Lembrança.
Para a moça: uma conversa inicialmente desconversante, que ficará gravada na Estação do Coração.
Para mim: uma conversa a três, que ficará gravada na Estação da Imagem.
“Linha Férrea” de Tércia Montenegro, um ótimo livro de contos que recebeu o 1º Prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira em 2000 pela Revista Cult.
“Elogio da Leitura” – Gabriel Perissé
Boas músicas:
O Trem das Sete – Raul Seixas
Trem das Cores – Caetano Veloso
Um comentário:
Parece brincadeira. As coincidêcias. Parece brincadeira, parece que alguém faz dessas só para sacanear e ver se alguém percebe que coincidência não é. Alguém maior. Alguém menor. Alguém do tamanho da gente. Não sei.
Reli o 'blog: meu querido', veio-me algo, comentei. Eis que aberta já a devida aba, 'estação de cores' me aguardava como que para não perdesse eu a entoada. Pois bem, não perco: registremos. e tornemos público. Que os dois pulsem por igual. Em você. Em mim. Em todo mundo.
"Um encontro. Acasos. Imagens. Cores. Constatação. Um sopro"
Esse sopro ao fim... Parece brincadeira.
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