13 fevereiro 2009

Terra, terreno, terraço, terreiro, enterro, enterrar, terror, término

Enquanto meu pai carregava a arma, minha mãe regava o jardim.
Foi assim, doutor. Ele só queria enterrá-la no quintal na intenção de guardá-la. Era de um tio distante. Quis fazer isso cedinho para não chamar a atenção da vizinhança. O momento foi amaldiçoado. Questão de segundos. Eu tinha acabado de saltar da cama, nem tinha dobrado o lençol e estava comendo pão com manteiga e café quentinho quando tudo aconteceu. Eu chamei pelo pai, mas de boca cheia, me engasguei com os farelos. Quer dizer, eu tentei chamar, né? Porque engasgado, na verdade, eu grunhia. Tossi um bocado e enquanto tomava um copo d’água pra desentalar, vi uma pessoa de vestido vermelho que apareceu e sumiu. Para mim foi mesmo uma aparição. Quando chamaram pelo pai na porta da frente:
- Oh Vicente!
Aí, eu vi a sombra do marmanjo. Botei de vez toda a comida pra fora.
Vomitei. Cuspi tudo.
Quando eu reparei bem... pois não é que o Seu Nonato, pai de uns meninos que moram lá na rua de baixo, estava trazendo o Manuel, que vestia um vestido vermelho. Nem sei explicar para o senhor o que eu senti naquela hora, doutor. Meu irmão estava com a cara desfigurada, parecia que tinha levado porrada a noite toda. Ele estava... Tenho até vergonha de dizer, seu delegado, mas é o senhor quem sabe dessas coisas de lei, não é? Pois é, ele tinha era maquiagem no rosto. Senti nojo.
O pior é que esse seu Nonato veio cheio de razão dizer que o Manuel estava botando o "filhinho" dele no meio de gente que não presta. E quem presta nessa vida, doutor? Só sei que os dois começaram um bate-boca interminável. O pai veio saber que gritaria era aquela. Não sei o que deu nele quando viu o Manuel com o rosto todo borrado. Podia se preparar para o pior... Porque se tem uma coisa que o pai não admite, doutor, é ser desonrado, e mais, diante dos outros. Ao ver aquela cena, ele se transformou e esbravejou sua dor. O destino não perduou. O Manuel gritava com a voz rouca pedindo pra ele não fazer nada antes que lhe explicasse tudo. Não adiantou. O olhar de meu pai era de ofendido, envergonhado... Ele insultou. E condenou. Meu pai quis lutar contra a humilhação. Eu quis lutar contra a ira de meu pai. Seu Nonato, quando percebeu o desassossego saiu às pressas. Com as mãos sujas da terra molhada, meu pai pulou em cima do meu irmão e deixou cair a arma.
Ainda pude ver minha mãe tranqüila colhendo rosas no jardim.
No alarido da confusão, enquanto voltava o olhar para os dois e pensava em uma maneira de como agir, meus pensamentos foram interrompidos pelo barulho estrondoso dos tiros.
O pai passou mal.
Perdi os meus sentidos por um instante.
A cor vermelha do vestido misturava-se ao sangue.
Meu pai balbuciou baixinho:
- Manchei o nome de minha família.
Quis ter impedido a zanga de meu pai ou a maldita antes que chegasse
ao chão. Ao cair, o revólver disparou dois tiros certeiros em Manuel. Eu vacilei, doutor, mas não tenho culpa. Eu só obedeci ao pai: “Não se meta, porque tô ensinando o teu irmão a ser macho, até isso eu tenho que ensinar pra ele”.
Não tenho nada a ver com a briga deles não, viu, doutor?!
A minha mãe? A mãe é surda.
Ora, eu estou dizendo para o senhor.
Ela perguntou se o Manuel já tinha chegado. Queria saber se o espetáculo teatral tinha sido aplaudido. Se o personagem de travesti poderia render fama.
Manuel paralisado.
Eu disse para ela trazer as rosas.
Na manhã seguinte um déjà vu. Novamente na hora do café vi o pai enterrando a arma, e Manuel.